19/05/2013
A
crise de nossa civilização técnico-científica exige mais que
explicações históricas e sociológicas. Ela demanda uma reflexão
filosófica que desemboca numa questão teológica. Quem o viu claramente
foi Martin Heidegger (1889-1976), antes mesmo que tivesse surgido o
alarme ecológico.Numa famosa conferência em 1955 em Munique “Sobre a
questão da técnica”na qual estavam presentes Werner Heisenberg e Ortega y
Gasset, ele tornou claro o risco que o mundo natural e a humanidade
correm quando se deixam absorver totalmente pela lógica intrínseca deste
modo de pensar e de agir: intervem e manipula o mundo natural até às
suas últimas camadas para tirar benefícios individuais ou sociais. A
cultura técnico-científica penetrou de tal forma na nossa
autocompreensão que já não podemos entender a nós mesmos nem viver sem
essa muleta que introjetamos em nosso próprio ser e estar-no-mundo.
Ela
representa a convergência de duas tradições da filosofia ocidental: a
platônica de cariz idealista transfigurada pela incorporação cristã e a
aristotélica, mais empírica que está na base da ciência. Elas se
fundiram no século XVII a partir de Descartes e fundaram a moderna
tecno-ciência moderna, o paradigma dominante.
O interesse desse modo de ser é como são as coisas, como funcionam e como nos podem ser úteis. Não é o milagre de que as coisas são,
confrontadas com o nada. Separamo-nos do mundo natural para entrar
profundamente no mundo artificial. Perdemos a relação orgânica com as
coisas, as plantas, os animais, as montanhas e com os próprios seres
humanos. Tudo se transforma em instrumento para alguma finalidade. Não
vemos o ser humano, como pessoa, portadora de um propósito, mas a sua
força de trabalho, seja física seja intellectual que pode ser explorada.
Se
algo pode ser feito, será feito sem qualquer justificação ética. Se
podemos desintegrar o átomo não há porque não faze-lo e construir uma
bomba atômica. Se podemos lançá-la sobre Hieroshima e Nagasaki quem o
impedirá? Se posso manipular o código genético, não há limite moral ou
ético que o possa coibir. E fazemos as experiências que acharmos
interessantes e úteis para o mercado e para certa qualidade de vida.
Heidegger nos adverte que esta tecno-ciência criou em nós um dispositivo (Gestell),
um modo de ver que considera tudo como coisa ao nosso dispor. Colonizou
todos os espaços e subjugou todos os saberes. Transformou-se num motor
que se acelerou de tal forma que já não sabemos como pará-lo.
Tornamo-nos reféns dele. Ele nos dita o que fazer ou deixar de fazer.
Neste
ponto Heidegger aponta o altíssimo risco que corremos como natureza e
como espécie. A tecno-ciência afetou as bases que sustentam a vida e
criou tanta força destrutiva que nos pode exterminar a todos. Os meios
já foram construídos e estão aí à nossa disposição. Quem segurará a mão
para não deslanchar um armagedon natural e humano? Essa é a
questão magna que nos deveria ocupar como pessoas e como humanidade e
menos o crescimento e as taxas de juros.
A resposta tentada por Heidegger é uma Kehre,
uma ”Volta” que signfica uma revira-Volta. Este é o propósito final de
todo o seu pensamento, como o revelou numa carta a Karl Jaspers: ser um
zelador de museu que tira a poeira sobre os objetos para que se deixem
ver. Como filósofo se propunha (pena que usa uma linguagem terrivelmente
complicada) remover o que encobre o habitual e o cotidiano da vida.
Pela sofisticação técnico-científica ele ficou esquecido, abstrato ou
enrijecido. Ao fazer isso o que se revela então? Nada senão aquilo que
nos rodeia e que constitui o nosso ser-no-mundo-com-os outros e com a
paisagem, com o azul do céu, com a chuva e com o sol. É deixar ver as
coisas assim como são; elas não nos oprimem mas estão, tranquilas,
conosco em casa. Foi buscar inspiração para esse modo de ser nos
pre-socráticos particularmente em Heráclito, que viviam o pensamento
originário antes de se transformar com Platão e Aristóteles em
metafísica, base da tecnociência.
Mas suspeita que seja tarde demais. Estamos tão próximos do abismo que não temos como voltar. Na sua última entrevista ao Spiegel de 1976 publicada post-mortem diz: “Só um Deus nos pode salvar”.
A questão filosófica sobre o destino de nossa cultura se transformou
numa questão teológica: Deus vai intervir? Vai permitir a autodestruição
da espécie?
Como
teólogo cristão direi como São Paulo:”a esperança não nos engana”(Rm
5,5) porque “Deus é o soberano amante da vida”(Sb 11,26). Não sei como.
Apenas espero.
Leonardo Boff é autor: Proteger a Terra-cuidar da vida: como escapar do fim do mundo, Record Rio 2010.
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