Jun 22nd,
2013
by Diego
Viana.
Fonte AQUI
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Para finalmente dar meu palpite sobre o furacão que passou
no Brasil nas duas últimas semanas, adotei dois princípios: pensar em termos
conceituais, em vez de impressionistas, e começar do começo. Os motivos,
espero, vão ficar claros ao longo do texto.
No começo, isto é, entre a porradaria geral da polícia e a
primeira manifestação realmente gigantesca, a interpretação geral era de um
“aqui também”. Até então, o país que realmente estava fervendo era a Turquia.
Lá como cá, o primeiro vetor invocado para explicar a súbita capacidade de
motivação foi o acesso às redes sociais. Ou seja, a Turquia e o Brasil seriam
algo como um segundo tempo do animado ano de 2011, que teve Primavera Árabe,
Occupy Wall Street, indignados na Espanha, manifestações em Israel, Chile e
mais tantos outros países.
Mas eis que veio 2012, o ano da decepção: a Espanha, como o
resto da Europa, seguiu com suas políticas de austeridade; na Grécia, o
neonazismo ganhou terreno. No mundo árabe, os países sortudos se viram com
governos religiosos e conservadores; os azarados, com guerra civil. O Occupy
teve de se contentar em descobrir que não só Obama baixou a cabeça para Wall
Street, como, no que tange aos direitos civis, estava na mesma linha de Bush.
Derrotas, ao que parece.
Agora, 2013. Novos países entram na dança. Além da Turquia e
do Brasil, Índia e Indonésia, além de, mais uma vez, os bravos chilenos, se
colocam em movimento. Como sempre acontece, comparações pululam com o famoso
maio de 1968, quando a greve geral francesa, somadas às manifestações dos
estudantes franceses, se espalharam para o Leste Europeu, o México, o Brasil,
antes de resultar em derrota e apatia.
Algo nessa comparação, porém, não se encaixa. Em 1968, o que
houve de efetivo, como a greve que, sem eufemismos, parou a economia da França,
foi comandado pelos fortíssimos sindicatos da época, um tempo de mobilização
industrial e partidos de esquerda poderosos. Os caminhos para se chegar aos
objetivos, fossem quais fossem as pautas de cada grupo social envolvido, à
exceção provável dos estudantes, estavam bem traçados, até onde podiam divisar
os envolvidos.
Hoje, não há nada disso. Em 2011, os árabes queriam derrubar
seus ditadores. E depois? Os espanhóis queriam mandar embora o neoliberalismo…
e mais o quê? Os novaiorquinos eram contra a plutocracia, como quase todo
mundo. E assim por diante. No Brasil, as manifestações mais ou menos pequenas
contra a cara de pau do transporte público se expandiram da noite para o dia
numa maçaroca de gente despolitizada que protesta contra conceitos abstratos
como a corrupção, mas não quer saber de questões concretas como… a corrupção do
oligopólio do transporte. Com isso, as mesmas críticas endereçadas aos
indignados e ao Occupy voltaram: as pautas são difusas, as pessoas não propõem
nada de concreto.
Há Duzentos Anos
Mas é exatamente aqui que o assunto se torna realmente
interessante. Pautas difusas não são coisa nova. São, na verdade, bem antigas e
é isso que merece ser olhado mais de perto. Processos políticos não
institucionais, processos até mesmo revolucionários, que misturassem gente de
classes baixas, médias e altas, ainda que contendo em seu interior muita
hostilidade entre essas classes, também não nasceram com o MPL ou a praça
Tahrir. A rigor, a primeira metade do século XIX foi inteira tomada por essa
confusão na Europa pós-revolução francesa. Tudo isso culminou não com 1968, mas
com 1848, a “primavera dos povos”. Por sinal, o socialismo marxista, em todas
as suas variantes, que guiou os partidos e sindicatos de 1968 e a práxis
contestatória ao longo do último século, foi gestado nessa época, da
experiência do jovem Marx assistindo ao que acontecia debaixo de seu nariz. Os
textos publicados nos anos seguintes por ele e por Engels eram, a rigor,
tentativas de interpretação do que tinha acontecido. Porque, até então, ninguém
sabia ao certo.
Eram monarquistas constitucionais ao lado de republicanos,
reacionários bourbonistas contra socialistas de primeira hora, nacionalistas,
regionalistas, operários, camponeses, intelectuais, funcionários públicos, cada
um com suas reivindicações. Mas, acima de tudo, todos atuando um tanto quanto
no escuro. O mais importante de tudo: não havia muitos modelos disponíveis. Os
modelos que existiam pareciam mofados, travados, obsoletos. O conceito de
república ainda era um tanto quanto aristocrático (pense em Péricles);
democracia ainda significava bagunça, o caminho certo para a tirania; o
socialismo, então, nem se fale, estava se encaminhando para as primeiras ideias
de Proudhon e Saint-Simon. O conceito de “democracia liberal”, então, que hoje
parece tão óbvio, mal começava a ser gestado.
A revolução na França, que iniciou a Segunda República, veio
na seqüência da fracassada monarquia de julho, por sua vez resultado da
revolução derrotada de 1830, ainda na esteira das derrotas das revoluções de
1789 e 1792. A rigor, essa revolução também esteve fadada ao fracasso, já que
não levou quatro anos até cair de novo na monarquia, desta vez o segundo
império, sob Luís Napoleão. Em outros países, foi uma surpresa: na Prússia,
misturou o desejo de unificação com a ascensão da classe operária. Na Rússia,
aboliu a servidão. Na Áustria, os húngaros queriam independência, mas só o que
obtiveram foi um pouco mais de autonomia. E assim por diante.
O único ponto em comum é que as estruturas das sociedades
europeias na época estavam em transformação. O poder precisava abrir espaço
para acomodar as camadas burguesas urbanas que se tornavam verdadeiramente
poderosas nesses países e precisavam dominar ao menos uma boa parte do aparelho
de Estado, para conseguir competir com a Inglaterra já industrializada. Ao
mesmo tempo, os poderes precisavam acomodar, de alguma maneira, o crescimento
dos operários e das camadas médias baixas das cidades, com suas demandas
simples, mas explosivas, como alimentação e, para os pequenos comerciantes,
instrumentos confiáveis de crédito. Ou seja, tratava-se de, tateando e
escorregando, instaurar um novo sistema de distribuição e manifestação dos
poderes, tanto dentro quanto fora do Estado. Por fim, quem conseguisse assumir
o controle sobre os aparelhos do Estado instituiria um direito, enquanto quem
ficasse de fora se veria obrigado a buscar todos os meios para o fissurar.
Dessas pautas difusas nasceram a democracia liberal e o conceito de socialismo
que tivemos desde então.
Paralelos, não repetição
Não quero empurrar essa analogia longe demais, nem muito
menos declarar que 2013 (ou 2011) é o novo 1848. Mas é interessante anotar os
paralelos, para entender que as tensões de um mundo com pautas indefinidas não
são novidade, a história não é linear e ainda vai levar muito tempo até
sabermos o que resultou disso tudo. Certamente, nesse meio-tempo, parecerá, e
com razão, que as revoltas de 2013, como as de 2011, as de 1968, as de 1848 e
tantas outras, saíram derrotadas. (Aliás, citemos também: os quilombos, os
boxer chineses, até mesmo os haitianos que conseguiram a Independência e
pagaram caro demais por isso.) Acontece que, na acomodação final, os poderes
constituídos sempre saem com a posição mais confortável, ainda que não tão confortável
quanto antes, ou então as revoluções vitoriosas se metamorfoseiam nos poderes
que elas mesmas conseguiram derrubar… Mas deixemos isto de lado por um momento.
No plano internacional, uma semelhança que poderia ser
apontada com a primeira metade do século XIX é uma redistribuição da divisão
internacional do trabalho. Outra é a ascensão de novas classes médias em países
até então depauperados e atrasados. Por que as revoltas de 2011 na Europa não
foram um levante da classe operária, como costumavam ser? Ora, as origens da
oferta industrial se deslocaram pelo mundo, ao mesmo tempo em que a natureza do
trabalho na fronteira tecnológica também se desloca. O novo produtor explorado,
que vem se somar ao antigo, mas à distância, como se em outro plano ou outro
universo, é um trabalhador intelectual. Sua relação com o empregador não é a
mesma do operário fabril de Manchester no século XIX. Nem do atual. Além disso,
suas ambições vão além da mera subsistência, certamente, e seus meios de
exercer a criatividade e, no limite, a participação política, são muito mais
amplos. Isso talvez venha a ser o fator mais frutífero. Veremos. Ao mesmo
tempo, esse operário cognitivo do século XXI flutua sempre entre o conforto
pequeno-burguês e uma estranha posição de exército “pós-industrial” de reserva,
categoria difícil de definir, mas, para usar uma estranha imagem, talvez
verdadeira, quem sabe o novo lúmpen, aquele que alimenta as formas mais
fascistas e animalescas do conservadorismo, não seja hoje, em vez daquele maltrapilho
de outrora, uma classe média precária, mas ainda assim arrogante e violenta?
O caso brasileiro, em particular, é talvez mais sutil, e por
isso talvez mais nebuloso, do que o de outros países. Basta comparar o discurso
autoritário e desafiador de Erdogan na Turquia, o saldo de mortos lá e na
primavera árabe, com o recuo, embora tardio, dos detentores do poder de cá, bem
como a comparativa leveza – se é que usar esse termo não seja em si uma
atrocidade – da brutalidade policial; até agora, os únicos mortos foram um
rapaz atropelado por um motorista (pra variar) e uma senhora hipertensa que
inalou gás lacrimogêneo. O processo civilizatório do Brasil é lento e seu
sentido é de muito longo prazo. Mas envolve algo difícil de apontar
diretamente, pelo simples fato de ser quotidiano, isto é, constante, e só estar
começando a ganhar contornos mais sólidos agora, com a já referida ascensão
social de novas classes. Quem há de negar que nosso quotidiano é sectário,
excludente, terrivelmente violento – e não estou falando de criminalidade, mas
de relações sociais, molares e moleculares.
Traços de uma sociedade
O transporte público é um dos itens onde essa violência
fundamental da relação social brasileira é mais visível. Não me parece ser
nenhum acaso o fato de que o grupo que finalmente conseguiu unir pautas até
então isoladas umas das outras (LGBT, feminismo, movimento negro, movimento dos
sem teto, dos sem terra, povos indígenas, a luta contra a violência policial
etc.) tenha sido aquele cuja reivindicação é o transporte público, a mais
quotidiana e, ao mesmo tempo, mais ampla em termos de classes afetadas.
Ademais, trata-se, também, de um grupo que consegue conjugar sua origem
universitária com um trabalho intimamente relacionado às pautas das periferias
silenciadas. Não é qualquer ativista de faculdade que aparece às seis da manhã
em Franco da Rocha para fazer passeata. Quem grita que “o gigante acordou”
certamente não faria isso.
Eu gostaria de chamar a atenção para um fato curioso da
pragmática do português brasileiro. Já reparou que, por aqui, usamos
diferentemente os termos “sociedade” e “povo”? Isso não é uma curiosidade
irrelevante, creio. Usamos “sociedade” para nos referirmos a quem tem voz; é
praticamente como se estivéssemos dizendo “alta sociedade”, mas incluindo todo
mundo que consegue comprar um carro zero. Por sua vez, “povo” designa algo
muito abstrato, o velho “hoi polloi” dos gregos, isto é, o grande número, sem
rosto, sem nomes, a multidão amorfa e perigosa, desprovida de direitos e de
responsabilidade para com o coletivo, cujas únicas manifestações midiaticamente
visíveis são as descargas de ódio ou de alegria, na violência ou nas
festividades. A comunicação entre a sociedade e o povo se dá sempre assim: ou
com condescendência, como quando o pessoal de Ipanema vai comer feijoada em
Oswaldo Cruz, como quando um magnânimo patrão ajuda a mãe da empregada a
conseguir um leito no hospital; ou, por outro lado, com rispidez e crueldade,
quando alguém do “povo” sai da linha que lhe foi designada por alguém da
“sociedade”. Já quando alguém da “sociedade” sai da linha, é porque “o Brasil
não tem jeito, mesmo”.
Um velho adágio brasileiro diz que a sociedade civil no país
foi inventada de cima para baixo: como, no período da Independência, só o que
havia eram os poderosos proprietários e sua multidão de escravos alijados da
política, teria sido preciso inventar a sociedade brasileira quase por decreto.
Desde então, a disputa política no Brasil se dá entre a centralidade de um
imperador (ou correlato) e o poder de oligarquias locais. Sociedade civil,
necas. Aliás, pode-se dizer que na América espanhola desde o início ficou
determinado que o poder pertenceria ao segundo grupo, o dos caudilhos locais.
Mas isso é outra história.
Verdade ou não, estaria aí uma explicação no mínimo
interessante para o fato de que a luta, no Brasil, é a mesma dos ramos e folhas
que crescem debaixo do asfalto, tentando rachá-lo e, com isso, atrapalhando o
fluxo dos possantes veículos acima. O povo, a idéia de uma sociedade civil integrada,
com espaço para todos, aparece aos olhos de quem está por cima como praga, pura
e simplesmente. Não é à toa que o movimento social, no Brasil, quando começa a
mostrar resultados, é logo decepado pela mão forte e o braço hostil de uma
espécie de proto-fascismo.
Não sei até que ponto o adágio que citei é justo. Mas um de
seus corolários me parece fora de questão. Grosso modo, todas as iniciativas
públicas, no Brasil, são decididas e implantadas à revelia da esfera,
justamente, pública. Isso vale também para coisas boas, como programas sociais
e investimento em infraestrutura urbana, como se o fato de serem ideias bem
intencionadas eximisse o poder –mais uma vez – público de dialogar com a
população (Sociedade? Povo? Ambos?). Não chega a ser surpreendente que o único
dos grandes partidos brasileiros a contar em sua origem com uma multiplicidade
de movimentos sociais esteja hoje, profissionalizado e de posse do executivo
federal, atropelando… os movimentos sociais! Questione um petista a esse
respeito e, a não ser que mude de assunto na cara dura, ele te dirá: mas no
nosso governo foi investido tanto e tanto a mais na educação e na saúde; os
programas sociais trazem justiça social e reduzem o poder do caudilhismo. Duas
verdades, historicamente localizadas e, no quadro mais amplo, bastante
insuficientes. Recomendo a esse respeito a leitura dos artigos de André Singer
e esta entrevista aqui.
Aos olhos do petista bem intencionado, essas duas verdades
justificam tudo. Desde a aliança com as bancadas ruralista e evangélica até o
envio da Força Nacional de Segurança contra indígenas, passando pela assinatura
de uma verdadeira lei de exceção com a Fifa. Mas isso vale para todos os demais
partidos. É como os tucanos justificando o AI-5 digital do Eduardo Azeredo, o
projeto de cura gay de João Campos, o violento elitismo da gestão Alckmin, as
estripulias do governo goiano e a âncora cambial com o velho “estabilizamos [o
lado financeiro d]a economia”. Em seguida, criticam a centralização do Estado
no Brasil e defendem o federalismo, perfeitamente cientes de que estão
simplesmente defendendo o caudilhismo local contra o imperialismo central, sem
sair do mesmo plano de debate em que se encontravam José Bonifácio e Frei
Caneca, 190 anos atrás.
Até o simpático e quase inócuo Psol, com seu ainda mais
simpático solzinho, assume uma postura altaneira, como se tivesse alguma
espécie de ascendência moral e intelectual sobre as massas, mas fazendo comício
na Lapa e ficando longe de Madureira. A propósito, antes que me soltem raios e
trovões, sou eleitor de Ivan Valente.
Nada disso, no geral, é culpa dos partidos (no particular, é
claro que é. Uma decisão tomada pelo PT, pelo PSDB ou pelo Psol é
responsabilidade de quem a tomou). Esse é o nosso tradicional modus operandi. É
assim que dividimos nossos estamentos, com alguma variação ao longo das
décadas, mas não muita. E se algum crédito nessa história toda deve ser dado
aos governos do PSDB e do PT, de 1995 para cá, particularmente do segundo, é o
fato de que, sim, sem sombra de dúvida a ascensão social e a modernização
macroeconômica criam os problemas que levam a catarses públicas como as das
últimas duas semanas. Para o bem e para o mal, como sempre.
Nossa vertente das transformações demográficas
Antes de mais nada, precisamos deixar um pouco de lado a
distinção, estanque demais, entre classes A, B, C e assim por diante. Entre os
que sobem e os que descem começa a haver um intercâmbio difícil de identificar,
mas nem por isso menos real. As próprias universidades públicas não são tão
elitizadas quanto a estatística dá a entender. Muitos ex-alunos de más escolas
públicas entram em cursos com nota de corte baixa da USP ou da Unesp, por
exemplo, e entram com muita ambição de subir na vida, muita vontade de
batalhar. Aliás, não tenha dúvida de que a expansão das universidades federais
nos últimos anos tem um papel gigantesco nisso. Esses jovens batalhadores
convivem com estudantes de classe mais alta que, no mínimo, têm alguma
curiosidade de disposição para o diálogo e, ao se dar conta de que não vivem
mais no mesmo país, percebem que não vão poder levar a vida confortável e
cercada de serviçais que tiveram seus antepassados.
Ou seja, por um lado algumas pessoas sobem, outras descem, e
no meio de uma clivagem extrema começa a aparecer algum tipo de intercâmbio e
mistura. Alguns reagem a isso criando grupos heterogêneos, outros reagem
simpatizando por ideias com fumos fascistas, a ponto de querer reverter a
marcha da história. Aqueles que ascendem querem as benesses da ascensão, querem
fazer parte daquilo que diziam que existia, a “sociedade” brasileira. Mas a
“sociedade”, como vimos, só é sociedade no sentido em que a maçonaria é uma
sociedade, um grupo fechado, de difícil acesso. Alguns ficam revoltados.
Outros, além de revoltados, percebem que precisam criar a sociedade, como tal,
do nada. Alguns ainda se vêem como excluídos, “apenas povo”, mas sabem que algo
na sua condição mudou. O quê, exatamente? A ver, ou melhor, a fazer.
É claro que a situação é confusa. É preciso entender que,
quando manifestantes dizem que “o gigante acordou” (talvez se esquecendo de que
os movimentos sociais e os partidos – sim, eles mesmos – estão nas ruas há anos
e anos e só ouviram da “sociedade” desse tal gigante que são arruaceiros e
atrapalham o tráfego), não é só uma parte do “gigante” que acorda. Tudo acorda
junto. Onde há sonhos, há também monstros, há traumas recalcados, há
denegações, há sede de vingança, medos de mudança, necessidades de manter
privilégios, oportunidades vistas para se dar bem e assim por diante. O que
acorda é uma quimera, uma hidra, um dragão, desses que podem arrasar o exército
de um tirano, mas também estraçalhar a armadura de um herói.
Recuperando a cronologia
Ainda assim, a situação é menos confusa do que parece quando
vista no imediato. Um olhar cronológico pode ajudar, da campanha pela redução
da tarifa de ônibus até o aparente triunfo do conservadorismo dos anti-partido
(lembrando que a única opção para o anti-partidarismo é transmutar-se em
unipartidarismo. Más recordações nesse campo, não?). Não consigo traçar a
cronologia até o começo dos atos, mas sei que o MPL, cujas manifestações no
M’Boi Mirim e panfletagem na praça da República não vêm de ontem, parece ter
concluído, em algum momento, que já tinha músculo suficiente para se manifestar
em regiões mais privilegiadas e, por isso mesmo, perigosas para quem quer sair
do casulo. Talvez tenha entrado no cálculo, também, a percepção de que todo
mundo já se convenceu de que o transporte público precisa mudar radicalmente e
muito rápido.
Essa estratégia foi dando mais ou menos certo, mas nada que
fosse levar o Estado ou a prefeitura a repensar seu curso de ação. Até que,
para azar dos diretamente afetados, mas sorte do movimento e, por que não
dizer, do país, o passado resolveu entrar em ação. Aquilo que há de mais
mesquinho, sectário, excludente e anti-social no Brasil deu as caras. Dois
editoriais de uma infelicidade, de uma arrogância, de uma truculência e de uma
ignorância ímpares, mas ainda assim, paradoxalmente, bem características do
nosso poder à revelia, clamaram pelo que há de pior nas nossas relações
sociais: o apelo à violência policial, o gesto bruto de calar um incômodo. O
mesmo fez um tolo promotor, mostrando que, ainda por cima, a lei, no Brasil, é
exercida como um assunto privado, apanágio, como forma de auto-defesa
institucional, da “sociedade” contra o “povo”; algo já sabido mas nunca
explicitado de maneira tão sintética e odiosa.
Em seguida, o ministro da Justiça, membro daquele partido
outrora vinculado aos movimentos sociais, ofereceu ajuda para a repressão,
evocando involuntariamente as imagens daquilo que a Força Nacional de Segurança
tem feito contra as populações indígenas. Ora, por mais que o brasileiro não se
importe muito com a sorte dos índios, inconscientemente sabe que ele próprio
não será tratado como cidadão pleno quando estiver de frente com um policial. E
aí entrou em ação provavelmente o mais despreparados desses todos, o governador
de São Paulo, que não deixa dúvidas de que está disposto a atropelar qualquer
população para defender privilégios, como fez no Pinheirinho, quando expulsou
famílias à bala para favorecer o sujeito que quebrou a Bolsa do Rio com um
cheque sem fundo. Nesse caso, entra também um gosto pessoal pela violência
extrema, algo estranho e patológico, a ponto de cobrir de elogios os policiais
que agiram flagrantemente fora da lei. Sem falar no prefeito, aquele mesmo que
outro dia desceu da prefeitura para falar com os sem-teto mas preferiu, lado a
lado com o governador, ignorar o que se passava na capital do Estado. Curiosa
reversão de atitude, que ele deveria explicar.
E não tinha como não acontecer o que aconteceu. Todo o
Brasil viu o que fizeram os obedientes capangas do poder brasileiro. Detalhe:
estou falando do poder de maneira muito ampla. Nos três níveis, nos três
poderes, na situação e na oposição, no público e no privado. Ou seja, algo
inacreditável: todas as instâncias do poder no Brasil, agindo em concerto para
sufocar as demandas da população. Todos eles, juntos, colocando-se violentamente
contra a possibilidade de uma sociedade civil que se construísse de maneira
imanente, de dentro pra fora, de baixo pra cima, chame como quiser. Isso pode
ser difuso, mas está longe de ser abstrato.
Acontece que a sociedade brasileira se tornou mais complexa
nos últimos anos e dentro de um mundo mais complexo também. Hoje, é difícil
espancar o “povo” sem acertar um pouco de “sociedade” também. Eu diria mesmo
que os movimentos sociais só vão ser vitoriosos quando a distinção desses
termos desaparecer. Até lá, vai ser difícil impedir que um movimento por pautas
concretas seja seqüestrado por banais manifestações conservadoras do “contra
tudo que está aí”.
Além disso, não se pode subestimar o papel das tecnologias
de rede digitais, mas também não se pode esquecer que a cada momento, seja o
surgimento da imprensa de pequena escala no fim do século XVIII até o
mimeógrafo no século XX, tecnologias de comunicação sempre tiveram um papel
capital na constituição de mobilizações políticas de toda ordem, bem como em
seu esvaziamento e acomodação – basta pensar na televisão. Hoje, mais do que o
Facebook e o Twitter, como em 2011, quem colocou em xeque a atuação para-legal
do poder foram as câmeras de vídeo nos celulares, essas que filmaram policiais
sem identificação (coisa gravíssima) quebrando as próprias viaturas, depois
skinheads espancando ativistas, depois transeuntes sendo alvejados e
apartamentos virando alvo para o batalhão de choque.
Quando chegou a esse ponto, a coisa pegou muito mal para o
poder. Todos eles. Então todos os lados do nosso espectro político consideram a
reivindicação, em si, inaceitável? Aparentemente, sim, até mesmo aquele partido
que surgiu do meio dos movimentos sociais… A tal ponto a coisa cresceu, que uma
parte substancial do poder tentou se apropriar da pauta, partidarizá-la,
transformá-la numa fulanização parecida com o “Fora Collor”. Um colunista,
desses que dão palpites prepotentes sobre tudo, sem jamais investigar nada (o
sujeito é cineasta, não me consta que tenha feito entrevistas antes de condenar
os movimentos sociais de maneira atrabiliária), teve de se retratar.
Por um instante
Nesse momento, o campo de disputa para os famosos “corações
e mentes” era a via pública, algo que acontece raramente no Brasil e que, até
hoje, quando aconteceu, sempre foi ou esmagado ou seqüestrado pelo poder. De
repente, o que aconteceu na segunda-feira 17, a meu ver, pode melhor ser
interpretado não como uma estranha mistureba de pautas às vezes contraditórias,
nem exatamente como uma tentativa de seqüestro pela pauta conservadora, mas
como a constatação de que, por um instante, mas talvez também por um período
mais duradouro, ao menos a possibilidade existe de que o processo político
incorpore ou considere o plano da rua, a imanência da vida, a disputa de
espaços no interior da sociedade civil. Ou seja, que se caminhe para uma
superação do exercício do poder sempre e inapelavelmente à revelia, num estado
meramente administrador de oligopólios.
A violência policial potencializou magnificamente o alcance
das manifestações. Para quem ainda duvidada do anteparo entre o autoritarismo
latente e as demandas do quotidiano, a dúvida não pode mais persistir. Um
anteparo violento e o único campo em que, de fato, a polícia age com eficácia.
Afinal, coibir crimes comuns, por exemplo, não é o forte de policiais que não
saem dos postos quando vêem um assalto acontecendo à sua frente, na rua. A tal
ponto que a polícia não conseguiu, na terça, cumprir essa sua função mais
banal: prender criminosos comuns cometendo crimes comuns no centro da cidade.
Exatamente como acontece no quotidiano brasileiro, talvez ainda com um
componente de “viu só o que acontece quando nós não interferimos?”. O
quotidiano brasileiro é isso. No entanto, descer o sarrafo em periferias e
manifestantes, isso a polícia brasileira faz muito bem.
No dia seguinte, com muita má vontade e uma cara de pau
enorme da parte do prefeito e principalmente do governador (“as empresas não
podem arcar”… “é um sacrifício enorme”…), a tarifa voltou a seu valor anterior.
Mas nesse momento a coisa já estava muito estranha. Nenhuma palavra sobre os
temas concretos do quotidiano. O transporte desapareceu como tema, justamente
quando se poderia entrar no que havia de mais importante: o problema dos
oligopólios do transporte, esses que “não podem arcar” enquanto a população “se
sacrifica”. Tudo aquilo que impede as cidades de viver como cidades, de pulsar
com a potência de seus habitantes, produzindo relações e interações, a
criatividade, o coletivo, foi poupado.
Os editorialistas que publicaram os clamores à repressão,
evocando, sim, os editoriais de 1964, não sentiram que precisavam se retratar.
Ao contrário, continuaram no esforço cada vez mais bem-sucedido de seqüestrar a
pauta e esvaziá-la com a velha história do “contra a corrupção” – mas contanto
que seja uma corrupção abstrata. O governador não foi questionado sobre a ordem
para que os policiais removessem a identificação de suas fardas, configurando
uma polícia quase secreta, totalmente ao arrepio da lei. E sim, se eles o
fizeram, foi obedecendo ordens. Policiais militares se consideram militares e a
hierarquia, muito mais do que o dever para com o cidadão, é a prioridade para o
policial militar. A rigor, àquela altura, com esse silêncio todo, nada impedia
que se voltasse a ter medo da polícia no dia seguinte. E no dia seguinte, como
se viu em vários pontos do país, voltou-se a ter medo da polícia.
A violência
Cabe uma palavra, neste ponto, sobre a questão da violência,
não só a da polícia, não só a dos aproveitadores, não só a dos agitadores
infiltrados, mas toda ela. Colocando-se assim, como conceito, ela perde seu
caráter quase consensual – todo mundo, quase, é contra – e se revela
terrivelmente complexa e dúbia. No plano individual, compreendo bem o que possa
querer dizer “sou contra a violência”. Eu, como individuo, posso decidir ou não
dar um murro na cara de alguém ou me afastar de uma pessoa que faça isso com regularidade.
Posso mesmo me decidir a fazer parte de um grupo violento e sou plenamente
responsável por essa decisão, isto é, respondo por ela. Subindo mais um degrau,
pode-se dizer que uma manifestação particular pode escolher ser pacífica;
aliás, deve. Para isso, porém, é preciso uma organização bastante forte, uma
grande disciplina e liderança. Ou seja: movimentos sociais constituídos,
partidos e sindicatos conseguem fazer isso. Usuários do Facebook, isoladamente,
com demandas abstratas e anti-partidarismo, não. Nesse caso, uma insana
descarga de violência se torna inevitável, justificando todo tipo de repressão.
Subindo mais um degrau, ou seja, chegando no plano da ação
política como um todo, dizer-se contra ou a favor da violência perde o sentido
que tinha originalmente. É como dizer-se contra o particularismo de interesses
de grupo, a corrupção em geral ou a lentidão das decisões burocráticas. Antes
de ser uma escolha moral, algo intrinsecamente molecular, a violência é um fato
afetivo e, exatamente por isso, está no cerne de toda política. Não à por acaso
que Weber define o poder do Estado como o monopólio de violência legítima.
“Legítima”, ele diz: a lei, o Estado, particularmente o Estado de direito,
atuam de modo a institucionalizar e ordenar processos que, deixados por conta
própria, se resolvem sempre pela violência. Nem que seja a violência de
resistir como um muro imóvel. Quando um carro bate contra ele, o choque é
violento. É sempre bom voltar à Crítica de Violência de Benjamin: a violência instaura
o direito e ela reforça, mantém, o direito. A violência pode ficar escondida,
mas não desaparece jamais.
A violência, quando se descarrega como se descarregou no Rio
esta semana, em São Paulo na semana passada, em Fortaleza, em Campinas, no
Recife, em Ribeirão Preto, em Vitória, em Brasília, pode ser melhor encarada
como uma medição. De quê? Do descompasso entre as vias institucionais de
acomodação de conflitos e os próprios conflitos, em torno de desejos,
interesses, necessidades, potenciais. Ou seja, é uma medida de frustrações,
raivas, medos. Isso vale para todos os lados: a frustração de quem está subindo
e não consegue fazer valer sua ascensão. A frustração de quem está perdendo
privilégios e não consegue, e não quer, se adaptar. A frustração de quem quer
ocupar um lugar na sociedade (negros, gays, mulheres, periferias) mas vê os
caminhos bloqueados até mesmo por quem foi designado – isto é, eleito – para
ampliar esses caminhos. A potência agressiva de quem detém o poder de editar
imagens, transmiti-las para todo o país e adaptar a realidade das ruas a sua
própria pauta. Portanto, não estranhe que radares sejam destruídos e que
qualquer palácio seja alvo de invasão: são símbolos do poder, algo à mão para a
fúria destrutiva.
Rumo à derrota?
Como em 1848, a multiplicidade de frustrações, em 2011 e em
2013, rendeu manifestações gigantescas, brigas homéricas, incertezas, impasses,
cooptação por forças conservadoras. É claro que o contexto é completamente
diferente, a escala também, e basta ver um mapa das incontáveis barricadas no
bairro operário de Saint Antoine, em Paris, em 1848, para enxergar o fosso
enorme entre o que aconteceu naquela época e o que se vive hoje.
Ainda assim, o que vale reter é que, ao final, o processo
como um todo tornou-se algo tremendamente assustador, cuja direção, daqui por
diante, é muito difícil de divisar. Não vejo transformações importantes
acontecendo no curto prazo, até porque as vias que chegaram a se abrir, como a
questão do oligopólio dos transportes, a violência policial ou o gosto por
sangue dos editoriais, rapidamente se fecharam. Foram esquecidas. Como em 1848,
mas também 1830, 1964, 1930, 1968, 1792, 1956, tantos outros anos que entraram
para a história, no final das contas, a reação terá sido mais forte. Sem dúvida,
e olhe que escrevo antes de a poeira baixar completamente. Mas, como em todos
esses anos, o plano das disputas sociais e políticas terá sofrido, sim, um
ligeiro deslocamento, nem que seja a consciência no governo federal de que
alguma satisfação deve ser dada à população. Nem que seja um novo sopro de
forças nos movimentos sociais, que talvez passem a sair a público com cada vez
mais vigor. Nem que seja a identificação das forças que nos puxam para trás,
para que ao menos tentemos neutralizá-las ou enfraquecê-las um pouco. No
mínimo, o debate se dará em bases ligeiramente diferentes, o que pode parecer
pouco, mas já é uma grande transformação.
Falando em movimentos sociais, o MPL, sabiamente, mas talvez
tarde demais, anunciou que não convocaria mais manifestações no curto prazo.
Provavelmente vão se reunir para decidir os próximos passos, mas espero que,
antes disso, tentem entender, entre si, exatamente o que foi que aconteceu,
depois que seus esforços abriram uma caixa de Pandora que continha muito mais
horrores do que eles imaginaram. Agora eles têm holofotes que nunca tiveram e
precisam lidar com isso de maneira sagaz, sob risco de sucumbirem a interesses
contrários muito mais fortes e muito mais brutais. O mesmo vale para os demais
movimentos sociais. Na hora em que escrevo, a energia humana para enfraquecer o
caráter sectário e oligárquico do Brasil parece estar ativa, mas muito próxima
de deixar-se cooptar pelo atraso. O atraso tira sua força do fato de estar
estabelecido há tanto tempo (é por isso que se chama atraso…). Neste momento,
se eu fosse dar palpite, sugeriria que se reforçasse a atuação nas periferias,
que é onde as demandas são mais fortes e mais concretas, isto é, menos anódinas
do que o tal “contra a corrupção” que justifica o anti-partidarismo
proto-fascista de gente que, a julgar pelas roupas e os dentes, não tem muito
de quê reclamar.
Quanto ao mundo como um todo, para ficar na analogia com
1848, quando lançamos um olhar para tudo que aconteceu entre 1789 e 1968,
podemos enxergar uma série de vitórias do conservadorismo; podemos enxergar até
mesmo uma única grande catástrofe, como a que descreve Benjamin, em que
escombros se acumulam sobre escombros para formar o chamado “progresso”. Aliás,
essa passagem das teses sobre a história, de Benjamin, é um dos trechos mais
belos da literatura universal. Por outro lado, também podemos fazer como
Antonio Candido e enxergar uma camada inferior de triunfos por baixo da
seqüência de desastres. Afinal, essas lutas esmagadas proporcionaram a jornada
de trabalho de oito horas, a seguridade social, o sufrágio universal, os
programas sociais, a emancipação feminina, o fim da escravidão e da maioria dos
regimes segregacionistas. A história não é linear, é assustadora e bela, mas,
principalmente, não acabou. Como sempre, está só começando.